Quando me convidaram para escrever este texto, pensei em falar sobre a questão da circulação de artes cênicas em nosso país. Rapidamente me lembrei do “Mambembão”, certamente o primeiro programa de circulação nacional de artes cênicas organizado e estruturado no Brasil. Debrucei-me a pesquisar sobre ele e fiquei assustado com as poucas e rasas informações na internet. Certamente, mais um vivo exemplo de descaso com nossa história. O Projeto Mambembão foi criado em 1978 pelo SNT – Serviço Nacional do Teatro e durante muitos anos efetivou a circulação de importantes espetáculos de fora do chamado “eixo Rio-São Paulo” para se apresentarem nestas duas cidades e em algumas outras capitais. Para sua época e seu contexto, esse projeto teve fundamental importância no desenvolvimento do teatro brasileiro, principalmente dando visibilidade para uma rica, diversa e descentralizada produção cênica, até então desconhecida dos grandes centros do Sudeste e do Sul, e permitindo um forte intercâmbio e trocas de experiências entre os fazedores da dança e do teatro de todo o país. Ao lado do Projeto Pixinguinha, que atuava com a linguagem da música, o Mambembão teve papel estruturante para se entender a diversidade de produção artística de todo o Brasil. Algumas gestões recentes da Funarte – Fundação Nacional das Artes, sucessora do SNT e da Fundacen – Fundação Nacional de Artes Cênicas, anunciaram e tentaram reeditar esse projeto, mas com uma equivocada compreensão da nova realidade do teatro e da dança no Brasil. A ideia de visibilizar a produção trazendo-a para o Rio ou São Paulo, não é mais suficiente para encantar os fazedores cênicos, que querem mostrar o seu trabalho não só nesses centros, mas, sim, em todo o Brasil. Por falar em Funarte, autarquia ligada ao Ministério da Cultura e principal instituição responsável pelas artes em nosso país, creio que é importante explicitar que esta vive hoje um lamentável processo de raquitismo, estando sucateada, descapitalizada, esvaziada de sentido e incapaz de propor uma intervenção no cenário artístico de nosso país.
Resolvi começar a escrever sobre a circulação porque acredito que aí está um dos maiores gargalos de nossa política pública para as artes cênicas e para as artes de maneira geral. Os artistas conseguem produzir e colocar de pé suas obras, mas quase sempre, não logram efetivar circulações e ampliar seu público. Muitas vezes nem alcançam seu próprio território e muito menos seu estado, o país e mais distante ainda, não conseguem mostrar seus projetos artísticos em outros países. O diagnóstico que temos da circulação de espetáculos no Brasil é que ela não reflete a diversidade nem da nossa produção, nem da dimensão territorial. É frágil em todos os sentidos e se dá de forma precária e incompleta.
Creio que vale a pena apontarmos alguns estrangulamentos nessa circulação artística no território brasileiro. Em primeiro lugar, é importante constatar que temos uma ausência histórica de políticas públicas para a circulação de nossa produção. Não encontramos programas consistentes e duradouros que promovam a mobilidade efetiva das obras teatrais em nenhuma das três esferas de governo. No governo federal, basicamente a única ação que tínhamos para a circulação era o Edital Myriam Muniz, da Funarte. Apesar de desastrosamente descontinuado, este edital já apresentava várias fragilidades ao longo de sua história. Só para se ter uma ideia da sua limitação, em 2015, último ano de sua edição, se candidataram 1.620 projetos, dos quais o prêmio contemplou um total de 52, sendo destes, somente 26 específicos de circulação. Fica clara assim a fragilidade de um edital que consegue atender somente a 3,2% dos projetos inscritos. Outro aspecto é que não temos também políticas públicas ou programas de atendimento aos teatros e às salas de apresentação no Brasil. Diferentemente de outros países, não existe nenhuma política continuada para a programação e qualificação técnica de teatros públicos ou privados. Para citar dois exemplos vindos daqui de perto, podemos apontar o Instituto Nacional de Teatro da Argentina com as linhas de subsídios para programação de teatros e, em alguns casos, para a compra ou construção de salas para o teatro independente, ampliando fortemente no país a rede de circulação. Outro exemplo é o Ministério da Cultura da Colômbia, que desenvolve o extenso Programa Nacional de Salas Concertadas que atende aos teatros e salas de exibição teatral em seus diversos formatos e tamanhos com recursos para a manutenção, qualificação e, principalmente, para a programação.
Outro entrave para o desenvolvimento de políticas para a circulação é a inexistência de uma organização sistêmica federativa de responsabilização entre as várias instâncias de gestão pública (municipais, estaduais e federal) e sobre o papel de cada uma na cadeia produtiva do teatro e, em específico, na responsabilização sobre a circulação de espetáculos.
Algumas iniciativas muito interessantes têm buscado potencializar a circulação no território nacional e internacional. Aponto algumas, já me desculpando às que não cito aqui. O INTERCENA, recém realizado em Porto Alegre, o Festival do Teatro Brasileiro e a Rede Internacional de Circulação Cênica do Ceará se apresentam com iniciativas que contribuem para a difusão das obras artísticas de forma eficiente.
Abordando, agora, a participação do setor empresarial privado e de empresas estatais, existem alguns projetos importantes e, nesse contexto, não podemos deixar de chamar a atenção para duas iniciativas positivamente exemplares. O Palco Giratório realizado pelo Departamento Nacional do Sesc, que promove um eficaz programa de difusão e intercâmbio no país, baseado numa rede de salas e teatros descentralizados, curadoria cuidadosa e acúmulo de expertise do trabalho cultural do Sesc em todo o Brasil, promovendo intensa, descentralizada e contínua circulação em todo o país. Outro projeto de destaque na circulação nacional é o Programa Petrobras Distribuidora de Cultura que está na sua quinta edição. Participei do processo de seleção em 2017, que contou com 647 projetos inscritos, dos quais foram escolhidos 57 espetáculos para circulação, com representantes de 16 estados, com apresentações previstas em 110 municípios, abrangendo todos os estados do Brasil em 2018 e 2019. Nas edições anteriores, de 2009 a 2016, o programa viabilizou a circulação de 240 espetáculos teatrais, com mais de 2.650 apresentações, atingindo público superior a 650 mil espectadores.
Apesar do destaque positivo desses dois projetos, observamos uma atuação tímida da iniciativa privada sobre a circulação nas artes cênicas. Assim, diante deste quadro geral negativo por parte dos governos, e de uma presença ainda pequena da iniciativa privada na circulação das obras cênicas no país, chegamos a uma situação de responsabilização forte aos festivais pela circulação do teatro brasileiro, sem, no entanto, a existência, em contrapartida, de uma política pública específica para os mesmos. Outra observação interessante é o papel quase que único que os festivais desempenham na apresentação de espetáculos internacionais em nosso território. Além do Brasil ter uma participação muito pequena na cena internacional, (escrevi sobre isso aqui), temos também um reduzido trânsito de espetáculos estrangeiros por aqui. Excetuando poucas capitais, a realidade é que o fluxo de espetáculos internacionais se dá, quase que exclusivamente, através dos festivais.
Para terminar estas pinceladas de pensamentos e reflexões imperfeitas e incompletas, aproveitando que estamos falando dos festivais, gostaria de expor aqui duas iniciativas, conexas, que de alguma forma buscam potencializar e refletir sobre o papel dos festivais na cena teatral brasileira, potencializando este papel de plataforma de circulação. O Observatório dos Festivais e a Rede de Festivais de Teatro do Brasil. O Observatório dos Festivais, organização que criei e coordeno, é um conjunto de ações articuladas com os objetivos de divulgar, pesquisar e produzir conhecimento sobre festivais de artes cênicas no Brasil, inicialmente com foco no teatro. Lançado em agosto de 2014, o OF nasce do acúmulo de experiência e contato com festivais realizados de norte a sul do país, aliado à vontade de contribuir para se pensar, registrar, desenvolver e compartilhar pensamento sobre este fenômeno que se multiplicou no Brasil nas últimas décadas sob as mais variadas formas de circulação da produção e pesquisa em artes cênicas. A Rede Brasileira de Festivais de Teatro surgiu em 2015, no marco do I Encontro de Políticas de Fomento e Sustentabilidade para Festivais de Teatro e reúne hoje mais de 50 festivais de teatro, de vários formatos e dimensões, de vários estados do país. A Rede tem se esforçado em colaborar para construir e debater uma política pública para os festivais de artes cênicas realizando encontros, audiências públicas e seminários em vários espaços de construção.
Por fim, tentando concluir, a constatação é que avançamos pouco na construção, por parte dos governos e da sociedade, de sólidas e estruturantes ações para a circulação e fruição da cultura e, especificamente, das artes cênicas. Pelo contrário, temos sofridos vários retrocessos e perdas e estamos atrasados na elaboração de um conjunto de práticas que possam colocar as artes como eixo central de desenvolvimento de nosso país.
Deixo aqui minhas esperanças de que este debate se alastre pelo nosso país e seja frutífero e vibrante, torcendo para que as políticas públicas para a cultura assumam o protagonismo merecido nos grandes temas nacionais. E que nós, artistas, produtores, fazedores, patrocinadores, governos, sejamos capazes de usar todo os espaços possíveis para uma verdadeira articulação, colaborativa, crítica e construtora, de um outro estágio de nossa produção artística.
Marcelo Bones
Programador, consultor e assessor de importantes festivais teatrais brasileiros. Idealizador e coordenador do Observatório dos Festivais, organização para a difusão de informações, reflexões e pesquisas sobre festivais de teatro no Brasil. Diretor Executivo da Platô – Plataforma de Internacionalização do Teatro, consórcio de quatro grupos teatrais que se reuniram para ações de internacionalização. Foi Diretor de Artes Cênicas da FUNARTE de 2009 a 2011. Licenciado em Ciências Sociais, é professor, diretor e fundador do Grupo Teatro Andante. Foi entre 2015 e 2016 consultor na área do teatro da Política Nacional das Artes do Ministério da Cultura e atualmente é Diretor de Articulação da Secretaria de Cultura de Belo Horizonte.